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Alex Flemming

1954 - atual

Alex Flemming nasceu na cidade de São Paulo, em 1954, e reside desde 1991 em Berlim, na Alemanha. Foi aluno do curso de Arquitetura da FAUUSP e frequentou o Curso Livre de Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, entre 1972 e 1974. Cursou serigrafia com Regina Silveira e Júlio Plaza, e gravura em metal com Romildo Paiva, em 1979 e 1980. Na década de 1970, realizou filmes de curtas-metragens e participou de inúmeros festivais de cinema. Em 1981, se muda para Nova York, onde permanece por dois anos e desenvolve projeto no Pratt Institute, com bolsa de estudos da Fulbright Foundation. Flemming é um artista multimídia que transita pela pintura, gravura, instalação, desenho, colagem, esculturas, fotografia e objetos, com foco na “pintura sobre superfícies não tradicionais” como o próprio artista define. A partir dos anos 1990, realiza instalações em espaços expositivos (MASP e XXI Bienal Internacional de São Paulo) usando bichos empalhados pintados de fortes cores metálicas. Posteriormente passa a recolher utensílios como móveis, poltronas, suas próprias roupas, computadores e outros objetos para utilizar em assemblages, aplicando textos. Flemming também cria silhuetas de aviões feitas com tapetes persas na serie Flying Carpets e aborda os dilemas da guerra em fotografias de grandes dimensões na serie Body-Builders, só para citar algumas de suas frentes de trabalho nos 40 anos em que atua como artista. Foi professor da Kunstakademie de Oslo, na Noruega, entre 1993 e 1994. Em 1998 produz sua obra pública de maior impacto, na estação Sumaré do Metrô em São Paulo com 44 retratos em vidro recobertos por poesia. Em 2016 inaugura mais 16 retratos em vidro colorido na Biblioteca Mario de Andrade também em São Paulo. Em 2002, são publicados os livros Alex Flemming, pela Edusp, organizado por Ana Mae Barbosa, com textos de diversos especialistas em artes visuais; Alex Flemming, uma Poética…, de Katia Canton, pela Editora Metalivros; e, em 2005, o livro Alex Flemming – Arte e História, de Roseli Ventrella e Valéria de Souza, pela Editora Moderna. Em 2006 a editora Cosac & Naif publica Alex Flemming com texto e entrevistas produzidas pela jornalista e curadora Angélica de Moraes. Em 2016 tem sua primeira retrospectiva no MAC-USP com Curadoria de Mayra Laudanna na exposição Retroperspectiva e livro Alex Flemming editado pela Martins Fontes. Em 2017 expõe a série Anaconda na Fundação Ema Gordon Klabin, e de dezembro de 2017 a Fevereiro de 2018 tem sua segunda retrospectiva – de CORpo e Alma – no Palácio das Artes em Belo Horizonte, com curadoria de Henrique Luz. Em 2019 expõe a série Ecce Homo na Galeria Kogan Amaro em São Paulo e a série Apokalypse em uma grande individual na Kirche am Hohenzollernplatz em Berlim (Alemanha). Em 2020 com a pandemia causada pelo COVID-19 Alex Flemming, em uma ação com a Companhia do Metrô de São Paulo ressignifica a sua mais conhecida obra pública, a estação Sumaré do Metrô. Para conscientizar a população sobre o uso de máscaras em espaços públicos, o artista aplica formas pentagonais de cores vibrantes que remetem à máscaras sobre os já conhecidos retratos da estação.


Quando mergulhamos o olhar na série de pinturas Alturas, de Alex Flemming, é inevitável ficarmos seduzidos pela força colorista que emana do conjunto. Há nessa imantação tanto a memória da História da Arte como seu aggiornamento. O artista realiza de modo original uma outra proposta para o gênero retrato. Coerente com o foco de sua obra, fortemente ancorada na figura humana, ele substitui a imagem do corpo pelo índice da presença: a régua que informa a altura do retratado. Há aqui uma dupla operação de linguagem. A figura se torna abstração e a neutralidade do fundo é subvertida por imagens multiplicadas por estêncil (técnica que integra seu vocabulário desde os tempos pioneiros do grafitti paulistano), ou por gestos rítmicos do pincel em igual voltagem de acontecimentos visuais do primeiro plano e disputando com ele a atenção do olhar. O estêncil é também recorrente nas letras, traçadas a normógrafo, ou seja, dentro de um padrão. O que se harmoniza conceitualmente com o padrão do sistema métrico para criar um estranho paradoxo: as pessoas retratadas são aquelas que, dentro de suas atividades específicas, fugiram ao padrão graças aos talentos que sabem exercer.

 

Alturas é a mais longeva e extensa série entre tantas que o prolífico artista costuma tocar em paralelo. Trata-se da celebração da Cultura produzida por personalidades as mais diversas, do Brasil ou do exterior. Iniciada em 1988, e realizada de modo ininterrupto desde então, é também um caminho para a percepção de sucessivas fases da produção pictórica do autor. Podemos afirmar até que é quase um resumo de todos os caminhos por onde andaram seus pincéis. O “quase” fica por conta da prudência necessária à análise de obra tão fértil em experimentações e hibridizações de meios, processos e linguagens ao longo de mais de quatro décadas. A gênese de Alturas é muito própria e até autobiográfica. Com a clareza e a objetividade que caracterizam as ideias realmente criativas, Flemming apropriou-se e expandiu em pintura um antigo hábito incorporado ao cotidiano doméstico da sua família: medir o crescimento dos filhos. Quando garoto, habituou-se a ter sua altura conferida em uma régua de traços construída e acumulada em uma parede da casa ao longo dos anos e das mudanças graduais de estatura. O procedimento, que ele replicou para todos seus retratados, consiste em tirar os sapatos e, de costas para uma tela previamente preparada e in progress com outras “marcas-retratos”, ficar imóvel para também ter sua estatura mensurada. Inevitável pensar que o personagem, nesse momento, pode ter conversas consigo mesmo e seu ego sobre como estará situado nesse ranking. Mas não é um ranking. Não se trata, é óbvio, de associar altura com qualidade de contribuição artística. Muito pelo contrário. O artista frisa que foi movido pelo desejo de sublinhar a importância da diversidade. “Todos somos iguais e todos somos diferentes”. A diversidade cultural é o valor celebrado.

 

Tirar os sapatos também tem carga metafórica: é o retorno ao chão, “de onde viemos e para onde vamos”, observa Flemming, que carrega consigo o atávico pendor germânico para os abismos existenciais da Angst. O conceito de medir é subvertido, portanto, por outra escala de valores: a relevância cultural, entendida aqui não só na esfera das Artes, mas também de outras atividades que, somadas, definem a cara do que é estar no mundo hoje e as muitas contribuições que tivemos para estruturar nossa própria visão de mundo, cada vez mais fragmentária e contingente, caleidoscópio de muitas facetas iluminadas que se completam por oposição ou complemento. Ou, como observa o autor, “um diapasão de comportamentos”.

 

A remissão ao universo da música é necessária também para observarmos o contraste entre os ritmos de tinta que dançam ao fundo e as escalas de cores sólidas recortadas em régua que regem o primeiro plano. “Hoje a gente pode ver essa série de telas até como um código de barras de nossa época”, observa o pintor. Sem dúvida. Há algo de único e objetivamente identificador nessa soma de personalidades que não são agrupadas por atividade, mas resultam do acaso de estarem acessíveis ao convite do artista para visitar seu ateliê e aceitar o jogo de ingressar na tela sem privilégios de lugar e até mesmo de vizinhança. “Há, por vezes lado a lado, pessoas que representam ideias antagônicas”, observa. As letras de normógrafo que, de modo criptográfico, seguem a verticalidade das réguas-personagens são índice do vocabulário visual do artista e que adquiriu sua face mais conhecida ao ser inserida na paisagem paulistana: remetem aos painéis fotográficos vitrificados da Estação Sumaré do metrô e da Biblioteca Mário de Andrade, dois poderosos ícones da presença da obra de Flemming em sua cidade natal.

 

“Desde 1989 mantenho no ateliê uma tela com fundo preparado a esperar os convidados retratados”, conta o pintor. Essa disciplina de produção se manteve quando passou, em 1991, a ter dois endereços residenciais: em São Paulo e Berlim. Em ambos, há ateliê com essas telas in progress, daí resultando um panorama riquíssimo de diálogos culturais e protagonismos definidores de épocas, atitudes e conjuntos de valores culturais indeléveis em ambos os lados do oceano Atlântico. A lista de personagens de cada quadro é um convite a checar contribuições e verificar a porosidade delas em nós. O elenco é extenso, cheio de surpresas e descobertas de outros contextos geográficos e culturais ao lado de valores consagrados que já habitam nosso acervo de memórias. Há especialmente aqueles que nos ajudam a perceber de que amálgama somos formados e que conjunto de valores nos mantém em pé como pessoas e cidadãos. Ao destacar essas personalidades, Flemming chama a atenção e homenageia de modo muito assertivo o valor estruturante da Cultura como indissociável de uma cidadania reverente à Vida. Celebra as medidas de nossos sonhos, que costumam transbordar de circunstâncias e restrições de momento.

 

Angélica de Moraes
Crítica de artes visuais e curadora independente
Exposição Alex Flemming: Série Alturas
[Galeria Arte132 | de 16 de agosto a 16 de outubro de 2021]

 


[1] Sem Título (Série Alturas) | Acrílica sobre tela | 200 x 140 cm | São Paulo | 2007

Hélio Campos Mello; Paulo Mendes da Rocha; Gil Vicente; Emanuel Araújo; German Lorca

[2] Sem Título (Série Alturas) | Acrílica sobre tela | 200 x 140 cm | Berlin | 1995

Felipe Ehrenberg; Taslima Nasrin; Rosa von Praunheim; Arthur Luiz Piza