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O Sequestro da Independência

13 de agosto - 24 de setembro de 2022

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“Esta outra independência (a cultural) não tem sete de setembro nem campo do Ipiranga, não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.” Machado de Assis (O Novo Mundo, Nova York)   

Esta exposição foi concebida em diálogo com o livro O sequestro da independência (2022), que narra a construção visual do mito do 7 de setembro. Propositadamente realizada a partir da reprodução de obras muito conhecidas e outras nem tanto, a mostra pretende iluminar as narrativas imagéticas em torno de nossa emancipação política, em quatro momentos chave: durante o processo de independência, em 1822; por ocasião da comemoração de seu centenário, em 1922; no ano de 1972, quando a ditadura militar celebrou os 150 anos do evento; e neste ano de 2022.

A ideia é demostrar como se formam diferentes memórias visuais, e como cada contexto político “sequestra” significados, para que se adequem ao momento e inflamem a imaginação.

A palavra sequestro deriva do verbo latino sequi, “seguir, ir atrás, acompanhar”. No Latim tardio, sequestrare queria dizer “colocar sob guarda”, derivado de sequester, “pessoa de confiança, acreditada, mediador”. O termo carrega, pois, uma grande ambiguidade. Ao mesmo tempo em que denota segurança, revela um ato de retirar algo de alguém. Metaforicamente, ganhou mais outros sentidos. O sequestro de um corpo diz respeito ao processo de esquecimento; uma das mais cruéis modalidades contemporâneas da violência. O sequestrador é aquele que se transforma, mesmo que transitoriamente, numa espécie de proprietário da existência do sequestrado, privando-o de seu próprio horizonte de sentidos.Muitas nações se imaginam a partir de uma pintura, a qual, por sua vez, foi imaginada em diálogo com outras telas, muitas vezes estrangeiras. Aqui não foi diferente. Mas  a tela do artista Pedro Américo, Independência ou morte, de 1888, tem um sentido especial para a nossa nacionalidade. De pintura encomendada pela Comissão construtora do Edifício-Monumento (futuro Museu do Ipiranga) em 1886, e apoiada por   d. Pedro II – numa forma de homenagem de filho para pai – foi virando apenas uma ilustração; um retrato fiel do 7 de setembro às margens do Ipiranga, progressivamente despida de seu significado original, autoria e contexto.

Também a emancipação brasileira passou por vários sequestros. Em 1822 foi sequestrada pelo próprio imperador Pedro I, que chamou para si o protagonismo do movimento. Em 1922 foi São Paulo que tentou concentrar a centralidade do processo. Em 1972, os militares ambicionaram transformar o evento num ato militar, orientação que vem orquestrando as ações do atual governo, em 2022.

Que o bicentenário da independência seja mais do que uma efeméride; que vire um momento de reflexão. Afinal, é sempre bom perguntar: “com quantas telas se faz uma nação e sua imaginação”?

Uma tela e seus detalhes

Vale a pena “ler” uma pintura a partir do todo, mas também por meio de seus detalhes – todos igualmente significativos. Num primeiro estudo que Pedro Américo fez para a sua tela Independência ou morte, apareciam em primeiro plano as populações não brancas – em atitude de apoio, mas também de protagonismo. Esse projeto não seria, porém, aceito, talvez justamente por tocar na sensível questão racial e da escravidão, a qual acabara de ser abolida, em maio de 1888. Por isso, na versão final, e que hoje conhecemos, um homem negro aparece distanciado. Mais interessante ainda: se d. Pedro surge montado em um cavalo – quando o próprio artista sabia que se faziam viagens de longa distância numa mula –, o povo é retratado descalço e acompanhado de um burro. Não há coincidência aqui; há intenção.

A independência ocorreu no Rio de Janeiro

Diferente do que se imagina, num primeiro momento a independência não seria creditada a São Paulo. A versão das “margens do Ipiranga” só apareceria em 1830, e justamente num documento escrito pelo próprio d. Pedro I, num contexto em que seu governo já se encontrava em crise e em disputa com as elites brasileiras – o que resultaria em sua abdicação em 1831. Tanto que, nas duas imagens do evento feitas pelo artista Jean-Baptiste Debret, existem apenas referências às celebrações na então capital do Brasil: o Rio de Janeiro.

Nas outras duas imagens, vemos representações do terreno do Ipiranga, que não era tão inclinado como parece ser na tela de Pedro Américo, o qual, também intencionalmente, elevou a colina para dar maior distinção ao ato. No canto direito do quadro, o pintor inseriu uma pequena casa. Trata-se de uma construção que Pedro Américo certamente viu quando de sua ida até o Ipiranga para estudar o lugar onde teria ocorrido o “Grito”. O que talvez o pintor não soubesse é que essa construção, que ainda hoje existe no Parque da Independência, e ficou conhecida como “Casa do Grito”, não é contemporânea ao “7 de setembro de 1822”, já que foi erguida somente na década de 1840.

Uma independência europeia

O artista francês François-René Moreaux terminou sua tela sobre a Proclamação da Independência em 1844. Recém-chegado à corte do Rio de Janeiro, ele pretendia com a obra conseguir um lugar dentre os artistas patrocinados pela monarquia brasileira. No entanto, como mal conhecia o país, o que se vê é uma pintura em tudo desajustada. Em primeiro lugar, o retrato de d. Pedro parece ter sido copiado de outra tela e simplesmente sobreposto ao corpo do cavaleiro, resultando numa composição visual estranha. Em segundo, chama atenção como os populares, que aparecem no quadro saudando o feito, são pintados à moda europeia, das crianças aos mais velhos.  Talvez por isso o trabalho tenha ficado no ostracismo, só ganhando maior proeminência no século XX. Ainda assim, ele reforça o apoio da população ao ato do príncipe, ao ovacioná-lo.

 Museu Paulista X Museu Histórico Nacional no centenário da Independência

A chegada de 1922 gerou muita expectativa por parte das elites dirigentes de São Paulo e do Rio de Janeiro. A pergunta que pairava no ar era: “a quem cabia a celebração do centenário da independência”?

E cada estado se empenhou na arte de bem comemorar. E de sequestrar a narrativa histórico-visual, também. São Paulo fez do Museu Paulista – ou Museu do Ipiranga –, inaugurado em 1895, o seu lugar preferencial. Foram encomendadas, então, várias telas, cujo grande intuito era mostrar a primazia paulista no processo que resultou na emancipação política do Brasil.  Já o Rio de Janeiro inaugurou nessa ocasião o Museu Histórico Nacional, que também comissionou uma série de quadros de figuras históricas reconhecidas, como d. Pedro e d. Leopoldina, produzidos a partir de um concurso lançado por ocasião do Centenário.

De tal disputa resultou uma visão muito sudestina do processo de independência, ainda presente na historiografia oficial.

A ditadura militar se prepara para comemorar os 150 anos de emancipação política

Em 1972, o país se encontrava em plena Ditadura Militar, período marcado por censura, cassação dos direitos básicos, e assassinato, tortura e sequestro (real e não apenas metafórico) de muitos antagonistas do regime. Para de alguma maneira desviar as atenções da violência que ocorria nas ruas do país, a cúpula do governo elaborou um amplo programa de atividades celebratórias, que incluiu a realização de uma identidade visual– que unia 1822 a 1972 – e o apoio à bilheteria do filme Independência ou morte (1972), estrelado pelo casal global Tarcísio Meira e Gloria Menezes; tudo com referências, não devidamente creditadas, à tela de Pedro Américo. O jornal Pasquim também foi censurado por dar a imagem da obra de Pedro Américo, mas mudando os termos do brado para “Eu quero mocotó”. Como se vê, o quadro ia virando uma espécie de “verdade”, quando essa nunca foi uma pretensão do seu autor.

Outras Independências

A narrativa histórica que foi se impondo com o tempo consagrou uma versão muito palaciana, masculina, europeia e sudestina da emancipação do Brasil. Conformou também a “lenda dourada” de uma independência sem lutas ou conflitos. Muito diferente foi o que ocorreu nas províncias do Norte e Nordeste – como Pará, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Piauí –, cujo processo de independência foi marcado por mortes e assassinatos. Integraram os batalhões durante os conflitos armados, mulheres, indígenas, negros escravizados que não chegaram a ser alçados no panteão de “heróis da independência”, reservado, sobretudo, aos homens brancos, e com todo o protagonismo conferido ao príncipe d. Pedro. Com a República, outras histórias começaram a ser contadas. Os estados passaram a encomendar pinturas que destacavam a atuação de seus líderes locais nas lutas travadas durante as guerras de Independência, e a defender um processo mais plural e efetivamente nacional.

Como se vê, a data do “7 de setembro de 1822” não encerra a narrativa sobre a emancipação política do país. É, antes, ponto de partida (ou de meada), de um longo processo que extrapola a história oficial centrada nas margens plácidas do Ipiranga.

Outros ecos do Grito

A força e popularidade da tela de Pedro Américo foram tamanhas que ela virou uma espécie de imaginação nacional. Por isso, foi relida inúmeras vezes por propagandas, sátiras políticas e por artistas contemporâneos que igualmente trataram de “sequestrar significados”. Enquanto Laerte parte da obra para fazer uma crítica política aos ausentes da independência, Mundano usa-a como pretexto para realizar denúncias sobre a má gestão do governo no que se refere ao meio ambiente e às populações indígenas. A obra também foi relida por artistas como José Antônio da Silva, que faz da independência quase um jogo, e Carybé, que dá um aspecto mais lúdico à cena.

Por fim, Daniel Lannes apresenta duas releituras do quadro de Américo. Na primeira, pinta a cena de um motel que ao fundo traz a famosa elipse realizada com as patas dos cavalos em grande movimento. Já na obra que é também a capa do livro O sequestro da independência, o artista aproxima duas cenas mais apartadas na pintura original: a movimentação de tropas que celebram o ato de emancipação e saúdam o príncipe, com o tropeiro que aparece pintado em vermelho no primeiro plano. Definitivamente o quadro de Pedro Américo ganhou vida própria.

Carlos Lima Jr., Lúcia K. Stumpf e Lilia M. Schwarcz

*Exposição realizada em parceria com a editora Companhia das Letras*


Imagem à esquerda: Pedro Américo, Estudo decorativo para O Brado do Ipiranga, [s.d], óleo sobre tela, 59 x 51 cm, col. Fadel, Rio de Janeiro.

Imagem à direita: Pedro Américo, Estudo para O Brado do Ipiranga, 1886, óleo sobre tela, 16 x 237 cm, Palácio Itamaraty, Brasília.

Imagem à esquerda: Jean-Baptiste Debret, Aclamação de d. Pedro I, imperador do Brasil, 1939, litografia, 20 x 38 cm, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Imagem à direita: Jean-Baptiste Debret, Souvenir de Rio de Janeiro, aquarela, 60 x 73 cm, col. Banco do Brasil.

Imagem à esquerda: Capa de cartilha de apresentação do símbolo oficial do Sesquicentenário da Independência do Brasil, arquivo Alexandre Eulálio, IEL UNICAMP, Campinas.

Imagem à direita: Antonio Parreiras, O primeiro passo para a Independência da Bahia, 1930, óleo sobre tela, 280 x 430 cm, col. Governo do Estado da Bahia, Salvador.

Imagem à esquerda: Mundano, Preservação ou morte, 2020, acrílica, spray e lama de Brumadinho sobre reprodução, 90 x 167 cm, São Paulo.

Imagem à direita: Daniel Lannes, O sequestro da Independência, 2022, acrílica e óleo sobre linho, 230 x 190 cm.


Vistas da Exposição | 13 de agosto a 24 de setembro

 


Fotos: 2022©SuzanaMendes