Transmutação e metáforas do inconsciente
10 de agosto - 26 de outubro de 2024
No Brasil desde meados dos anos 1970, o escultor italiano Renato Brunello, mesmo mantendo em seu horizonte criativo uma perspectiva internacional, incorporou em sua produção artística influências da arte e da cultura popular nordestina, como o artesanato e o folclore, e características da arquitetura vernacular pelo uso de materiais locais e técnicas construtivas tradicionais.
Vem de sua formação na Escola de Artes e Ofícios, em Veneza, o apuro da técnica com que tensiona o mármore e a madeira na criação de suas peças. Embora reconheça a tradição escultórica italiana na figuração, foi na observação do fazer criativo de artistas nordestinos que, como ele mesmo reconhece, transgrediu sua maneira de articular o manuseio dos materiais, incorporando a força expressiva da técnica e sublinhando a adaptabilidade do trabalhador de ofício. Esse aspecto é crucial na compreensão da prática escultórica de Brunello, que se molda àquilo que está à disposição, refletindo uma relação intrínseca entre a necessidade e a criação.
As obras de Brunello são avessas à classificação tradicional da arte, que se apoia em dicotomias como o abstrato versus o figurativo ou engajamento versus “arte pela arte”. Nelas, o elemento abstrato evoca o figurativo, ao mesmo tempo que a beleza da forma provoca (re)flexões. Cada peça contém uma narrativa, que se descortina ante o olhar ativo do espectador. A fruição da arte contemporânea, em toda a sua complexidade, exige essa imersão no universo do artista.
Nesta segunda individual, serão apresentadas na Arte132 Galeria obras recentes do artista, que refletem novas experimentações, para além de um legítimo deslocamento do seu pensamento, revelando o encontro entre o legado da tradição escultórica italiana e sua imersão na cultura brasileira. Cerca de 20 obras, sendo 10 inéditas, proporcionam leituras para a compreensão da sua intenção criativa, consciente ou não. Essa visão integra a subjetividade do artista à exterioridade do mundo.
Conceitos relativos a uma ampliação do campo da escultura são perceptíveis no eixo da produção axiomática do artista, que passou a abranger novas concepções, flertando com a metáfora e o simbólico. O resultado são obras tridimensionais que evocam a fauna e a flora do Brasil, ao mesmo tempo que ressaltam a expertise do artista no manuseio da matéria.
A maioria das obras em exibição se aproxima de silhuetas de corpos de animais ou de formas encontradas na natureza – concepção central do pensamento de Renato Brunello. Nesse sentido, a tessitura do imaginário brasileiro, impregnada de elementos culturais, sociais e históricos singulares, configura-se como um fator preponderante no arcabouço criativo do artista, conformando suas produções e possibilitando a manifestação de uma identidade estética arraigada na complexidade e na pluralidade, em que a perspectiva mística e mitológica adquire protagonismo.
Essa narrativa é explicitada nas esculturas de pequeno porte, como Gufo Rosa (Coruja Rosa) (2024), que é carregada de camadas de significado metafórico. A peça traz à memória a coruja de Minerva, presente na mitologia romana, podendo invocar ainda a narrativa de Ovídio em “Metamorfoses”, em cuja essência está a ideia de renovação e transformação constante. A obra pode remeter também a uma segunda interpretação: é possível observar a presença do sagrado-místico, característica essa que articula outro grupo de obras em exibição – por exemplo, Pipistrello (Morcego) – representado simbolicamente pela imagem de um manto esculpido.
A composição de Gufo Rosa mostra a combinação de mármore rosa de Portugal com madeiras maçaranduba e garapeira, presente em muitas das obras da individual. A escolha dos materiais evidencia a habilidade técnica do artista, que faz ressaltar a ambiguidade das texturas alcançadas a partir de uma única goiva (para talhar a madeira) ou de uma ferramenta específica para criar ranhuras no mármore. Diversas obras que compõem a exposição, como Concha (2024) e Boca da Verdade (2007), mostram vergões feitos na rocha metamórfica, que dão à estrutura uma camada visual e tátil, ressaltando intencionalmente o contraste entre o polido, cuja técnica evidencia a cor, e a textura bruta do mármore.
As peças de bronze de Brunello, que se estabelecem nas franjas entre a arte clássica e arte contemporânea, entre o passado e o presente, assumem formas oblongas de linhas puras. Os tridimensionais abstratos criados a partir de referências visuais orgânicas permitem uma interpretação aberta e subjetiva por parte do observador. Essa ambiguidade intencional é um aspecto-chave de seu trabalho, que busca transcender a mera representação em favor de uma experiência sensorial e emocional. Suas esculturas evocam formas da natureza, que podem ser reinterpretadas em uma linguagem minimalista – a solidez do bronze é contrabalançada por uma sensação de leveza e movimento.
Em outras esculturas, como Contorção (2005) e Ponto e Contraponto (2023), chama a atenção o modo como o artista se utiliza dos espaços vazados, tratando o vazio como forma. Na alternância entre o vazio e o cheio, Brunello cria uma interação entre presença e ausência, dando ênfase ao espaço ao redor e à presença do espectador, convocando-o ao deslocamento corpóreo e imaginativo.
Assim, permite ao observador não apenas apreciar a escultura em sua materialidade como também se envolver com o vazio que a obra delimita, gerando uma experiência estética que, ao transcender a simples observação visual, convida a uma reflexão sobre a relação entre a obra de arte e o espaço em que se insere. Dessa maneira, segundo a compreensão de Brunello, seus trabalhos podem ser experimentados como um sistema de comunicação, que produz e reproduz signos a partir do seu imaginário.
Para Renato Brunello, a escultura distingue-se da pintura pela ausência de bidimensionalidade, um ponto crítico que ele considera fundamental. “A escultura deve necessariamente se relacionar com a dinâmica do espaço, articulando volumes de maneira a criar uma interação fluida e expressiva com o ambiente”, diz. O artista compara a composição espacial da escultura a um passo de dança: “A ocupação do espaço é vital para gerar pontos dinâmicos e dialogar eficazmente com o próprio espaço”, diz.
Além dos materiais e técnicas empregados na criação das obras, o ateliê do artista emerge como princípio basilar na análise crítica de sua produção. O espaço transcende a função de local de trabalho, configurando-se como um ambiente de transmutação, onde a matéria se molda de acordo com o desejo, então corporificado nas formas. É ali também que o artista produz suas próprias ferramentas laborais para construção das peças.
É no ateliê que Brunello, ao manipular seus materiais, engendra um diálogo contínuo com seus instrumentos e processos. Um movimento de interação dialética e simbiose criativa revela a gênese do próprio fazer artístico. A organização espacial, a escolha de objetos e a disposição dos materiais não são meramente funcionais, mas sim carregadas de significados que oferecem pistas sobre os métodos de trabalho e as influências que permeiam a sua trajetória. Nesse sentido, o local se apresenta como um microcosmo da sua identidade estética, configurando mais uma camada simbólica nas esculturas.
Os tridimensionais presentes nesta exposição são composições que constroem “tensões-espaço”, onde a percepção do espaço e do tempo é transformada pela interação da obra com o ambiente, num processo contínuo de interpretação e reinterpretação. As esculturas se apresentam como um organismo espacial que articula uma “dança” de volumes, na qual o movimento implícito e a força expressiva dos materiais se entrelaçam. Cada curva, cada ângulo, cada textura das obras é uma narrativa em si, capaz de provocar uma gama de sensações no público, que interage corporal e sensorialmente com elas. A percepção e o significado emergem em conjunto, emanados da relação direta entre as esculturas e um espectador ativo, que vai além da mera contemplação.
Laura Rago | Curadora
Obras
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Acrobata, 2003, escultura em madeira de cedro e ferro, 100 x 44 x 14 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello.Pêndulo lunar, 2023, escultura em madeira de cedro, 36 x 30 x 13 cm.
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Garça, 2009, escultura em madeira de itaúba, 146 x 20 x 15 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello. Pipistrello [ Morcego], 2023, escultura em madeira de cedro, jacarandá e granito itu, 85 x 55 x 28 cm.
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Esquilo, 2024, escultura em madeira, 68 x 60 x 45 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello. Semente, 2024, escultura em madeira, 70 x 60 x 30 cm.
Renato Brunello. Planando, 2022, escultura em madeira de pau ferro, 150 x 40 x 20 cm.
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Flamingo, 2005, escultura em bronze patinado, 155 x 25 x 25 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello. Gufo rosa [Golfinho rosa], 2024, escultura em mármore portugal e madeira de garapeira e massaranduba, 90 x 25 x 26 cm.
Renato Brunello. Concha, 2024, escultura em mármore bege brasileiro, 40 x 80 x 48 cm.
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Convergência, 2021, escultura em bronze patinado, 64 x 35 x 22 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello. Contorção, 2005, escultura em mármore carrara, 40 x 25 x 18 cm.
Renato Brunello. Mergulho, 2018, escultura em mármore carrara, 15 x 40 x 8 cm.
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Cavalo marinho, 2023, escultura em mármore rosa portugal, 41 x 25 x 13 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello. Flutuante, 2017, escultura em mármore espírito santo, 52 x 26 x 23 cm.
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Boca da verdade, 2007, escultura em mármore espírito santo, 78 x 64 x 23 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello. Golfinho, 2007, escultura em mármore espírito santo, 70 x 35 x 25 cm.
Renato Brunello. Varal, 2006, escultura em madeira de cedro e ferro, 240 x 47 x 15 cm.
Imagem à esquerda: Renato Brunello. Raio do céu, 2018, escultura em bronze patinado, 200 x 70 x 30 cm.
Imagem à direita: Renato Brunello. Broto, 2017, escultura em mármore espírito santo, 60 x 80 x 75 cm.
Renato Brunello. Fragmentos, 2019, escultura em madeira e pátina branca, 270 x 52 x 22 cm.
Renato Brunello. Ponto e Contraponto, 2023, escultura em mármore travertino brasileiro, 53 x 72 x 40 cm.
Fotos: ©Everton Ballardin
Vistas da Exposição | 10 de agosto a 26 de outubro de 2024
Fotos: 2024©Suzana Mendes