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Claudino Nóbrega

08 de julho - 05 de agosto de 2023

Claudino Nóbrega | Uma trajetória de sonhos, caos e fé

Acesso ao catálogo completo


Em 1972, abri um modernariato, a Gallery 764. Foi a primeira galeria especializada neste assunto no Brasil. Nas horas vagas e fins de semana, eu fazia minhas pinturas no andar de cima da galeria, que ficava na rua Melo Alves.

Este período foi bastante experimental, fiz cartazes com tintas luminosas e paisagens bucólicas com enfoque psicodélico, coloridas, surreais. Um novo momento da pintura, já bem diferente de quando começara aos 16 anos. Esse recomeçar foi bem prazeroso e ajudou muito no meu aperfeiçoamento técnico. As pinturas não encalhavam no ateliê, eram ilustrativas e de fácil entendimento, eu as vendia a preços baixos para quem gostasse e também as presenteava. Nesta fase, o amigo e marchand Roberto Rugiero me representou por alguns anos, colocando minhas pinturas em diversas exposições coletivas, Também Antônio Maluf, artista plástico e proprietário da lendária Galeria Seta, que me conhecera menino, foi meu eterno apoiador.

Em 1982, dez anos após a abertura da minha firma, eu já tinha uma concorrência significativa; os valores dos objetos modernistas haviam se multiplicado, virando um rentável investimento, um ativo comercial com boa liquidez, e eu já me sentia rico. Nessa época, estava desenvolvendo uma pintura pontilhista, com técnica própria, aproximada do divisionismo italiano e do mosaico, com cores vivas, temas clássicos, sob orientação do amigo Luiz Munari, professor da FAU-USP. A aceitação desta pintura por parte do mercado foi imediata e, em pouco tempo, consegui duas galerias para me representar: a Galeria Seta e a Marques Galeria.

Empolgado com a ideia de ser artista profissional, mudei-me para o ateliê que construíra um ano antes, em um topo de morro, em Santana de Parnaíba. Decidi fechar a minha amada Gallery 764 para realizar um sonho ainda maior: poder viver exclusivamente de pintura.

Fiz minha primeira exposição individual em 1984, na tradicional galeria A Ponte, com obras adquiridas no período de dois anos pelo marchand Isaac Krasilchik. A exposição correu bem e metade das obras foram vendidas na inauguração. Por ser uma técnica demorada, as encomendas se acumulavam, mas eu trabalhava diariamente nos dois períodos, com disciplina e honestidade, honrando assim os compromissos assumidos, postura que aprendera com meu pai. Nesta fase, que durou três anos e meio, produzi cerca de duzentas telas.

No entanto, em um determinado fim de semana em meados de 1986, recebi o marchand Cesar Luiz Pires de Mello – era sua primeira visita ao meu ateliê, normalmente eu é que levava as telas até ele… Chegou por volta das 11 horas de um dia iluminado de outono, com temperatura agradável. Sentamo-nos no deck para apreciar a paisagem e conversar. Abri um vinho. Cesar era eclético, conhecia profundamente arte moderna e a arte barroca, colecionava os mestres brasileiros, de forma que tínhamos muitas coisas para conversar. Lamentei por não ter um piano no ateliê, para que ele pudesse tocar antes do almoço.

A refeição atrasou e acabei me excedendo no vinho… Quando ele me encomendou mais duas “naturezas-mortas”, eu me alterei e fui deselegante com ele, dizendo que não aceitaria a encomenda. Desabafei dizendo que já estava farto daquela repetição de tema e que percebera que a vida no ateliê ficara monótona demais, que eu precisava mudar de atitude, fazer algo para sair daquela condição de operário da arte e ser mais criativo, mais artista, mais arteiro. Na verdade, estava descontente apenas com minha conduta, não com a pintura em si, que sempre amei fazer, mas não era o caminho que havia sonhado…

Meu espírito inquieto clamava por mudança, novas pesquisas, sujar novamente as mãos de tinta, para poder seguir em frente com mais qualidade. Prometi a mim mesmo que, daquele dia em diante, não aceitaria mais encomendas e mergulharia com profundidade na pintura em busca de algo novo, algo que me representasse, que me instigasse.

O momento gerou enorme força propulsora em mim e continuei, ainda com a técnica pontilhista, a produzir estudos e experimentos, depois queimando-os. Segui mais dois ou três anos nesta instigante pesquisa, uma pintura que exigia mais da minha percepção. Passava momentos de empolgação ao penetrar no desconhecido, adentrar o caos, depois escapar para a luz. Nesses momentos, sentia-me em êxtase e próximo do sagrado, mas, em outros, sentia-me andando em círculos, sem bússola, num imenso deserto à procura de um oásis. Era a mesma vida, trancafiado no ateliê. De vez em quando, separava alguma obra que me parecia ter encontrado algo interessante, algum “acerto”.

Chegou um momento em que os acertos começaram a ser mais frequentes. Um determinado dia, juntei-os e comecei a contemplá-los de longe, descobrindo que tinham algo em comum – que, nestas telas, as cores já tinham passado para segundo plano e que os acertos, na verdade, decorriam do domínio das composições e decomposições da luz. Comecei uma nova fornada de telas nessa linha, gerando luzes tênues, de várias temperaturas, assumindo conscientemente a distribuição da luz dentro dos limites da tela. Percebi, então, que chegara finalmente a uma nova fase.

A partir dessa tomada de consciência, minha pintura amadureceu, ficou mais fluída, leve e coerente, com interações harmônicas de cores, gerando luzes tênues, adquirindo corpo, vendo surgir imagens arquetípicas e deixando-as criar vida. Aprendi a usar o “moiré” (efeito ótico que provoca embaralhamento na vista) a meu favor, fundindo cores, formando imagens não existentes. Fui voltando a ter uma sensação agradável ao adentrar nesta série de pinturas que se revelaram num renascimento, com nuvens coloridas em céu festivo, carregadas de fé e de sonhos.

Em 1991, apareceu em meu ateliê o amigo Leon Kossovitch, professor de Estética do Departamento de Filosofia da USP. Leon se encantou com a nova fase, escreveu um texto hermético sobre meu trabalho e, em 1993, publicou-o na revista Discurso, do seu departamento, com o título “A Luz em Claudino”. Agora, faço uma homenagem a ele, publicando-o novamente.

Essa nova série de pinturas me trouxe a sensação de completude, de realização, de reencontro comigo mesmo. Havia conseguido chegar num trabalho totalmente meu, sem influências externas, fruto de dez anos contínuos de trabalho. Senti que havia completado um ciclo. Porém, depois de anos a fio sem vender uma única tela, estava me sentindo pobre. Também estava cansado de ter uma vida quase celibatária dentro do ateliê, precisava me reinventar, respirar novos ares, conhecer e ter contato com pessoas, de forma que voltei ao comercio, descansando um pouco da pintura. Como atitude prática, enrolei as telas e as lacrei dentro de grossos tubos de PVC, onde ficaram guardadas por mais de 30 anos e que, agora, tenho a oportunidade de mostrar a vocês.

Para finalizar, deixo aqui meus agradecimentos a Lais e Telmo Porto, a toda a equipe da Arte 132 e, principalmente, a Leca Kanawati, por me incentivar e ajudar nesta empreitada.

Claudino Nóbrega


Obras

Imagem à esquerda: Porta da percepção, 1986, acrílica sobre lona, 74 x 81 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à direita: Homenagem à liberdade, 1986, acrílica sobre lona, 39 x 62 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à esquerda: Paisagem aérea, 1988, acrílica sobre lona, 95 x 68 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à direita: Lagos e montanhas, 1988, acrílica sobre lona, 69 x 95 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à esquerda: Paisagem chinesa, 1989, acrílica sobre lona, 60 x 85 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à direita: Vista do mirante, 1989, acrílica sobre lona, 53 x 84 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à esquerda: Cálice de Deus, 1989, acrílica sobre lona, 92 x 92 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à direita: Nas asas da Panair, 1989, acrílica sobre lona, 86 x 100 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à esquerda: Paisagem fugaz, 1988, acrílica sobre lona, 95 x 68 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à direita: Paisagem morena, 1988, acrílica sobre lona, 86 x 100 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à esquerda: Os bailarinos, 1989, acrílica sobre lona, 131 x 65 cm. Foto: Lalau Patay

Imagem à direita: O violeiro, 1990, acrílica sobre lona, 64 x 55 cm. Foto: Lalau Patay


Vistas da Exposição | 08 de julho a 05 de agosto de 2023

 


Fotos: 2023©Suzana Mendes